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Quando, em seis de setembro de 1893, teve início a Revolta da Armada, com que a Marinha de Guerra rebelou-se em parte contra o governo Floriano Peixoto, não se poderia imaginar que São Gonçalo, município recém-emancipado, teria importância fundamental nas ações para que o movimento rebelde fosse sufocado. E, embora tendo tal importância, o município é solenemente ignorado nos registros históricos que se seguiram, ficando os louros para as cidades do Rio de Janeiro e de Niterói, por serem as capitais da República e do Estado, à época, respectivamente.

A primeira relação entre aquele evento e nossa cidade está já no primeiro dia, quando os revoltosos ocuparam o navio Uranus, da iniciativa privada. Entre os rebeldes estava o então estudante de engenharia Manuel Penaforte (1872/1911), comissionado como tenente, que viria a ser prefeito gonçalense durante cinco meses e alguns dias, no ano de sua morte por causas naturais.

 Em sete de setembro de 1893, pela madrugada, marinheiros nacionais assaltaram o laboratório pirotécnico da Armação, em Niterói, e apresaram torpedeiras e munição, retornando ao centro da baía de Guanabara para municiar seus companheiros rebeldes. A população niteroiense com posses começou imediatamente a se mudar para São Gonçalo e, quando aqui já não havia casas para alugar, dirigiu-se a Itaboraí, Rio Bonito e, depois, Nova Friburgo.

Em Niterói ficaram os pobres (por falta de dinheiro), as autoridades (que viriam no ano seguinte a transferir a capital do estado para Petrópolis, temerosas do bombardeio de que eram alvo as construções no centro niteroiense) e alguns religiosos, entre eles o pastor Salomão Ginsburg, que chegou a produzir dois poemas dedicados a seus irmãos crentes para que lá permanecessem, mas ele mesmo acabou por se deslocar para São Fidélis e Macaé.

São Gonçalo armou-se para apoiar as forças leais ao governo e colocou em prontidão os 47º e 48º Batalhões da Guarda Nacional, aquele estabelecido aqui no primeiro distrito, com a missão de patrulhar a área costeira do Porto da Pedra até Vila Nova de Itambi, Porto das Caixas (ambos em Itaboraí) e Santana de Macacu (atual Cachoeiras de Macacu), e o segundo deles com a de proteger a costa em Itaipu, então distrito gonçalense. Paralelamente, por proposta do vereador José de Moraes e Silva, no dia 20 do mesmo mês de setembro, a Câmara Municipal dava plenos poderes a seu presidente (José Peixoto Guimarães, que tinha atribuições de prefeito) para a manutenção da ordem pública e socorro à população, havendo adquirido gêneros alimentícios em Niterói para venda aos pobres da cidade, por preço de custo. A esta altura, o coronel da Guarda Nacional Luiz Azevedo, que desde fevereiro esboçara toda a legislação do novo município, deixou-se vencer pela idade e mudou para o Rio Grande do Sul, por não mais poder combater os revoltosos. E o tenente José do Patrocínio de Freitas, dono de armazém em Cordeiros, foi servir no 48º Batalhão: ao retornar, como era foreiro, foi obrigado a mudar-se para Santa Isabel, onde não teve sucesso empresarial e decidiu, um ano depois, fixar-se no Engenho de Dentro, no Rio.

Em 11 de setembro de 1893, registrávamos nossa primeira vítima fatal: a torpedeira Javary, controlada pelos revoltosos, fez disparos contra o litoral, na Praia Grande, em Niterói, e matou três pessoas, entre elas o gonçalense Belarmino Muniz da Silva, conhecido por cadete Belo, natural da freguesia de Cordeiros, que com um irmão alistou-se no 5º Batalhão de Voluntários da Pátria e lutou na Guerra do Paraguai. Belo vivia do pequeno soldo de voluntário e do fabrico de cigarros, combateu durante cinco anos e escapou das balas paraguaias, mas não das brasileiras.

A oito de outubro, os jornais anunciavam já não existirem casas para alugar em São Gonçalo, Cordeiros, Porto das Caixas e Itambi, razão pela qual os trens da Estrada de Ferro Leopoldina partiam abarrotados de passageiros em direção a Rio Bonito, que também superlotou, e a partir de dezembro começaram a se deslocar para Nova Friburgo. Neste mesmo mês, no dia 13, houve primeiro confronto armado entre uma força do 47º batalhão da Guarda Nacional e os revoltosos, na Praia da Luz e na Caieira, na Ilha de Itaoca, Dois dias depois, seu comandante, tenente-coronel Manoel Francisco Rodrigues (futuro vereador e presidente da Câmara Municipal, com funções de prefeito), determinou que uma força comandada pelo tenente-coronel Júlio Procópio Favilla Nunes retomasse para os legalistas a Ilha do Engenho (onde hoje está a base de mísseis da Marinha do Brasil), o que foi feito na madrugada seguinte, com a prisão de dois oficiais e 29 marinheiros, e a entregaram ao coronel do Exército Roberto Ferreira. O mesmo batalhão voltou a sustentar fogo com os revoltosos, em primeiro e dois de janeiro, na Praia da Luz e no Focinho de Porco, na Ilha de Itaoca. Em 13 de março, por ordem do capitão Tello de Sampaio e do alferes Lima, o 47º percorreu todos os destacamentos, em apoio aos oficiais, enquanto os revoltosos deixavam a Baía de Guanabara e o conflito era encerrado. Nem por isso o 47º foi desmobilizado e, no dia 14, comemorava a vitória com iluminação e embandeiramento de seu quartel, havendo ainda recebido a ordem, no dia 15, de prender os rebeldes vindos da Ilha de Paquetá, missão cumprida pelo alferes Ezequiel dos Santos Júnior, tenente Otávio Silva, sargento Jorge Garcia e o voluntário Mário Rodrigues. Na Ilha do Engenho fora prisioneiro (e conseguiu fugir), o gonçalense major Jerônimo Ferreira da Silva, membro de família tradicional de Cordeiros e comandante do 34º Batalhão da Guarda Nacional, da então capital fluminense.

Favilla, jornalista gaúcho que se radicara aqui, denunciou o cônego João Ferreira Goulart de fazer parte de uma trama para o restabelecimento da monarquia, Afinal, o pároco fora monarquista empedernido, recebera várias homenagens do Império e era dono da Fazenda da Luz, que abastecia os revoltosos com água e víveres. Os radicais republicanos prenderam o cônego no dia quatro de fevereiro de 1894, embora ele nem sequer fosse dono da tal fazenda, que pertencera a seus pais e coubera aos irmãos na partilha dos bens herdados pela família, enquanto o prelado recebia sua parte em dinheiro e o distribuía aos pobres, passando a residir em uma chácara onde hoje é a Primeira Igreja Batista de São Gonçalo. Recolhido ao quartel da Força Policial (atual Polícia Militar), Goulart ficou sem saber o que fazer quando, no dia nove de fevereiro, o quartel foi evacuado e ele “esquecido” ali. Virtualmente livre, ele preferiu se apresentar ao coronel Fonseca Ramos, comandante da polícia militar, e este o remeteu ao general Francisco de Paula Argolo, que comandava as forças de defesa de Niterói e do antigo Estado do Rio de Janeiro. Argolo mandou-o apresentar-se diretamente ao presidente Floriano Peixoto, no Rio, e o cônego, obediente, acompanhado do jornalista e ex-vereador Manoel Benício, atravessou a Baía de Guanabara em uma tosca canoa. Já na capital federal, foi ao Palácio Itamarati (então sede do Poder Executivo nacional), mas não esteve com Floriano, que determinou a um auxiliar encaminhá-lo à casa de detenção. Dias depois, o presidente da República mandou chamá-lo e lhe indagou: “Sabe por que está preso?” E Goulart respondeu: “Não!” Ao que retrucou Floriano: “Pois nem eu”. Retirou-se e deixou-o livre para retornar a São Gonçalo. O pároco gonçalense ainda pagou outro preço à denúncia de que fora alvo: em 18 de abril, já encerrados os combates, a Câmara Municipal cassou-lhe o mandato de vereador, que havia conquistado em 1893, por haver faltado a quatro sessões, justamente no período em que estava preso… Quanto a Favilla, por ser coronel honorário e ex-sargento do Exército, terminou seus dias anos depois, no Asilo dos Inválidos da Pátria, no Rio de Janeiro, onde conseguira ser incluído em julho de 1903.

Porém, nem só Goulart sofreu naqueles tempos. Vítimas fatais foram o capitão Antônio Joaquim Correa de Azeredo Coutinho e o tenente-quartel mestre Emygdio Custódio de Oliveira, que serviam no 48º batalhão da Guarda Nacional, em Itaipu, mortos não por balas revoltosas, mas pela febre palustre, em 13 e 14 de abril de 1894, respectivamente. Antônio Joaquim, com o tenente-coronel do Exército, Ilha Moreira, tornou inescalável o ponto de desembarque e as fortificações de Itaipu, adoeceu logo depois e, conduzido em rede até Cordeiros, onde residia, ali faleceu, deixando viúva e oito filhos. Já Emygdio morreu sem que pudesse realizar completamente seu sonho: era vereador e só exerceu o mandato por curto período. Na época zona insalubre, Itaipu fez outras vítimas não fatais: no dia 17 de abril enfermaram o médico Gustavo Miguel Duque Estrada Meyer, o major Carlos Alberto Ribeiro, o capitão Quirino Alexandrino de Mello, os tenentes Patrocínio e Hermógenes de Azeredo Coutinho (filhos do já falecido Antônio Joaquim), e os alferes Palença e Tancredo de Azeredo Coutinho. Todos foram curados, mas Gustavo Meyer e seu companheiro de armas Antônio Vicente de Sá Malheiros Souto Mayor, que eram vereadores, perderam seus mandatos por faltarem (obviamente) a quatro sessões da Câmara Municipal, tanto quanto o cônego Goulart.

Outro que sofreu (porém, no bolso) com a Revolta da Armada foi o empresário Paulo José Leroux, dono do Porto da Madama e da estrada de ferro (EFPM) que o ligava à linha da Estrada de Ferro Leopoldina. Se já não recebia regularmente pelos serviços prestados à EFL, viu seu investimento esboroar-se de vez com a chegada do Exército, que ocupou o porto, suspendeu o tráfego da EFPM e instalou uma bateria de canhões e metralhadoras (denominada General Argolo) no alto do morro, para fazer frente aos revoltosos. Terminado o conflito, o exército retirou-se e Leroux requereu uma indenização pelos prejuízos sofridos, mas o ministério da Guerra indeferiu o pedido em 18 de março de 1895. O empresário recorreu então à Justiça e, em 29 de novembro de 1898, o Supremo Tribunal Federal decidiu seu último recurso, dando uma no cravo e outra na ferradura: negou a indenização, mas mandou que a União pagasse pelo aluguel das instalações, dinheiro que Leroux não chegou a ver até sua morte, em dez de dezembro de 1901, no Rio de Janeiro, onde foi sepultado. A esta altura, a bateria General Argolo já tinha sido desativada, em nove de fevereiro de 1895, e seu espaço passou a ser utilizado pela população local como mirante da Baía de Guanabara. Com o passar do tempo, o que era mirante tornou-se almirante e há hoje os que procuram saber quem é o patrono do “Morro do Almirante”, no Gradim…

Desde que a revolta teve início, em setembro de 1893, e até o seu fim (em treze de março de 1894, quando as forças rebeldes comandadas pelo almirante Saldanha da Gama retiraram-se da Baía de Guanabara e foram para o sul do país, apoiar a Revolução Federalista), as escolas de primeiras letras mantidas pelo Estado em Neves, Porto Velho, Porto da Ponta e Itaoca tiveram suas aulas suspensas, o que levou o governo a considerar insubsistente aquele ano letivo e determinar a retomada do ensino em 22 de abril de 1894, por já não haver risco para professores e alunos. Era tempo de comemorar o fim do conflito interno e, em 21 de abril de 1894, os oficiais do 47º Batalhão homenagearam a Força Policial, com recepção a seu comandante, capitão José Correia Dias Jacaré, girândolas, banda de música, flores e uma faixa na frente do Paço Municipal, por seu desempenho na manutenção da ordem e da segurança públicas. No dia seis de junho seguinte, o ministro da Guerra baixou ordem do dia enaltecendo os cinco batalhões da GN (dois deles em São Gonçalo e em seu distrito, Itaipu) e o comandante daquela milícia cívica na região, coronel Antônio Joaquim da Silva Fontes, fazendeiro em Cordeiros. Em novembro, a Igreja Matriz realizava a festa de Nossa Senhora do Amparo comemorativa ao fim do conflito.

Apesar da tranquilidade sobrevinda, a Revolta da Armada ainda causou vítimas posteriores. Primeiro, seis operários perderam a vida e muitos outros ficaram feridos na Ilha do Engenho, onde revoltosos e o Exército haviam deixado grande quantidade de granadas. Seu proprietário na época, João Ramos, contratou a firma Menick & Companhia para desmontar e revender as muitas granadas que ali estavam. Era o dia 31 de outubro de 1902 quando a manipulação errada daqueles artefatos provocou grande explosão e os danos nos trabalhadores. O segundo evento ocorreu muitos anos depois, em Neves: dona Úrsula Maria da Conceição, em vinte de novembro de 1911, usou uma bala de canhão-revólver para bater um prego na parede. O apetrecho, recolhido já há mais de 15 anos na Ilha do Engenho, estava em sua casa e dona Úrsula supunha não haver risco em usá-la como martelo. Enganou-se, pois o artefato explodiu e ela teve a mão direita amputada, ao ser atendida no Hospital de São João Batista, em Niterói.

 

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Fontes:

            História da Revolta de Seis de Setembro de 1893, de Felisbello Freire, volume I, p. 150.

            Emmanuel de Macedo Soares, pesquisador em História e jornalista.

            Ata da sessão da Câmara Municipal de São Gonçalo, de 18-04-1894.

            Diário Oficial da União, 11-07-1903, seção I, p. 4.

            Relatório do engenheiro Francisco de Paula Marques Leão, da secretaria de Obras Públicas e Industriais, do governo do estado, de 15-07-1895, p. 23.

            O Fluminense, 07-09, p. 2, 23-09, p. 1, 26-09, p. 2, 24-09, p. 1 e 3, e 04-10-1893, p. 3; 08-04, p. 1, 15-04, p. 1, 18-04, p. 2, 20-04, p.1, 22-04, p. 1 e 3, 25-04, p. 1, 06-06, p. 1, e 13-09-1894, p. 3; 14-02, p. 1, 19-03, p. 2, e 20-11-1895, p. 3; 24-04, p. 3, e 28-11-1896, p. 2; 30-11-1898, p. 1; 01-11-1902, p. 2; 12-03-1903, p. 1; e 04-11-1914, p. 2.  

             Gazeta de Notícias, 24-02, p. 1, 10-03, p. 1, 20-04, p. 2, 22-04, p. 1, e 24-04-1894, p. 1 e 2; 11-12-1901, p. 1 e 2; e 01-11-1902, p. 1.

             O Paiz, 17-12-1901, p. 3.

             A Noite, 20-11-1911, p. 2.

             Correio da Manhã, 04-08-1902, p. 4.

             Revista de História da Biblioteca Nacional, nº 74, novembro de 2011, p. 88, “O Diário do Almirante”, de Christianne Theodoro de Jesus.