Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 13 de maio de 1881 e faleceu em São Paulo, SP, em primeiro de novembro de 1922. Em 1908 esteve em visita a São Gonçalo e este é um fato relevante para mim. Por quê?
Primeiro, porque sua avó, Geraldina, era escrava na Fazenda Colubandê e considerada “cria” da família Pereira Carvalho, então proprietária daquelas terras, até a década de 1840, quando as vendeu e mudou-se para a Corte. Seu pai era Joaquim Henriques de Lima Barreto e sua mãe, Amália Augusta de Lima Barreto. Diga-se que a expressão “cria”, usada no século XIX e também em boa parte do XX, significava uma adoção não formalizada, um tratamento especial dado àquela criança, educada com esmero por seus “senhores”. Tanto assim devia ser com dona Geraldina, que sua filha (a mãe do futuro escritor) se tornou professora de primeira a quarta séries, profissão que exerceu na então Corte e depois Capital da República, reconhecida por seus alunos como excelente mestra.
Foi ali, na Corte, que Afonso Henriques veio ao mundo e aprendeu as primeiras letras com a mãe, cujo falecimento o levou a freqüentar a escola pública de dona Teresa Pimentel do Amaral. Graças a uma bolsa de estudos concedida por seu padrinho, o Visconde do Ouro Preto, radicou-se em Niterói e frequentou o Liceu Popular Niteroiense até 1894, nele completando os antigos cursos secundário e médio. No ano seguinte, ingressou no Colégio Nacional (Pedro II) e, ao fim do primeiro semestre, foi admitido na Escola Politécnica, sem chegar a graduar-se em Mecânica, reprovado que fora devido ao seu desinteresse pelas matérias e às constantes faltas (gazeteava as aulas para se dedicar à leitura na Biblioteca Nacional). Em 1902, começou a colaborar com jornais e revistas do Rio de Janeiro e, em 1904, internado seu pai por distúrbios mentais, assumiu o ônus de manter a família, o que o levou a fazer concurso, e ser aprovado, para amanuense do ministério da Guerra.
O alcoolismo e a depressão, como ocorrera com seu pai, também levaram Afonso Henriques a constantes internações psiquiátricas, mas em seus momentos de lucidez produziria textos para onze livros, dos quais um (Triste Fim de Policarpo Quaresma) se tornou sua obra principal, entre romances e contos, nenhum reconhecido pelos críticos da época, mas todos hoje formando um conjunto que o tornou um inovador da literatura brasileira. Morreu sem ser reconhecido por seus contemporâneos.
O outro motivo de minha citação de Lima Barreto é o fato de seu relato sobre a visita a São Gonçalo dar uma mostra de como era a cidade no ano de 1908 e fazer referência à Tramway Rural Fluminense, empresa hoje ignorada nos descaminhos da história, embora fundamental para o município, na virada dos séculos XIX e XX. Foi ela uma obra ciclópica, pode-se assim dizer, de Carlos Gianelli, o empresário natural do Uruguai e de família antes procedente da Itália, que conseguiu dar ao município o que de mais moderno existia à época: bondes de tração a vapor, ligando Neves a Alcântara, enquanto na capital do estado, Niterói, eles ainda eram puxados a burro. Além disso, nas Fazendas de Laranjal e Ipuca (hoje, Jardim Catarina), muito realizou, desde um hipódromo (de vida efêmera) até linha de trem própria, embarcadouro para a Baía de Guanabara, criação de gado, plantio de trigo, etc, tudo perdido para o Banco do Brasil, que penhorou aquelas propriedades e as levou a leilão como bens de garantia dos empréstimos para que a Tramway pudesse ser construída em alguns meses. Também esta empresa, que ficou em mãos de seu irmão, Leopoldo Gianelli, depois de sua morte, em 1909, acabou por ser incorporada pela Companhia Cantareira e Viação Fluminense, à época controlada por capitais ingleses (que jogaram pesado para dar fim à concorrência), na década de 1920.
Vejamos, então, o que diz Lima Barreto em seu diário, no dia 10 de fevereiro de 1908:
“Fui ontem a São Gonçalo. É um município limítrofe ao de Niterói. Fui à casa do Uzeda. Uzeda é um segundo oficial da Secretaria da Guerra, casado com uma professora pública do lugar.
Embarquei às oito e meia no Largo do Paço; fazia uma manhã quente e feia, ensombrada de nuvens. Encontrei o Pinho, um meu antigo colega da Escola Politécnica. Vinha de exercícios práticos. Soberbamente insuportável. Indagando da produção do município, não me soube informar com simplicidade. Atribuiu a falta da lavoura à indolência do povo. Tive vontade de perguntar se ele, engenheiro, tendo estudado a química, física e história natural, dava um exemplo salutar, cultivando o sítio onde morava. Calei-me, e foi dizendo bobagens. Fez uma crítica severa às tarifas do Tramway Rural Fluminense. É isto uma pequena estrada de ferro, com carros abertos ao jeito de bondes, que liga as Neves ao município de São Gonçalo. E uma coisa tosca, necessariamente exigindo para a sua manutenção uma série de medidas empíricas, que a prática dita; o idiota do Pinho quer que ela se guie pelos princípios tarifários que regem os fretes das grandes vias-férreas. Disse-me coisas proveitosas, que, por exemplo – o esforço da tração era o mesmo na subida que na descida. É profundo.
As Neves não tiveram, para os meus olhos, nada de notável. Têm o aspecto comum dos nossos postos afastados e edificados. Casas baixas, pintadas de azul, de oca; janelas quadradas; espessas escadas de tijolos e pedras, que dão acesso a portas baixas; fisionomias indolentes de homens pelas portas das vendas; mulheres: negras, brancas e mulatas – tristes, de longos olhares, em que há desejos de volúpias e sonhos de festas, de bailes, fantásticos, de envolvedoras agitações de todo o corpo, capazes de as fazerem esquecer e quebrar a monotonia daquela vida pobre e triste que levam, tão parecida ainda com a senzala, em que o chicote disciplinador de outrora ficou transformado na dureza, na pressão, na dificuldade do pão nosso de cada dia.
Tomei o tramway. Fui vendo o caminho. A linha é construída sobre a velha estrada de rodagem. Em breve, deixamos toda a atmosfera urbana, para ver a rural. Há casas novas, os chalets, mas há também as velhas casas de colunas heterodoxas e varanda de parapeito, a lembrar a escravatura e o sistema da antiga lavoura. Corre o caminho por entre colinas, há pouca mata, laranjeiras muitas, algumas mangueiras.
Eu, olhando aquelas casas e aqueles caminhos, lembrei-me da minha vida, dos meus avós escravos e, não sei como, lembrei-me de algumas frases ouvidas no meu âmbito familiar, que me davam vagas notícias das origens de minha avó materna, Geraldina. Era de São Gonçalo, de Cubandê [NR: Colubandê], onde eram lavradores os Pereiras de Carvalho, de quem era ela cria.
Lembrando-me disso, eu olhei as árvores da estrada com mais simpatia. Eram muito novas; nenhuma delas teria visto minha avó passar, caminho da corte, quando os seus senhores vieram estabelecer-se na cidade. Isso devia ter sido por 1840, ou antes, e nenhuma delas tinha a venerável idade de setenta anos. Entretanto, eu não pude deixar de procurar nos traços de um molequinho que me cortou o caminho, algumas vagas semelhanças com os meus. Quem sabe se eu não tinha parentes, quem sabe se não havia gente do meu sangue naqueles párias que passavam cheios de melancolia, passivos e indiferentes, como fragmentos de uma poderosa nau que as grandes forças da natureza desfizeram e cujos pedaços vão pelo oceano afora, sem consciência do seu destino e de sua força interior.
Entretanto, embora enchesse-me de tristeza o seu estado, eu não pude deixar de lembrar-me, sem algum orgulho, que o meu sangue, parente do seu, depois de volta de três quartos de século, voltava àquelas paragens radiante de mocidade, saturado de noções superiores, sonhando grandes destinos, para ser recebido em casas de pessoas que, se não foram senhores dele, durante algum tempo, tinha-o sido de outrem da mesma origem que o meu.
Eu vi também pelo caminho uma grande casa solarenga, em meio de um grande terreno, murado com forte muro de pedra e cal. Estava em abandono, grandes panos do muro caídos e as abertura fechadas com frágeis cercas de bambus. Eu me lembrei que a grande família de cuja escravatura saíra minha avó, tinha se extinguido e que deles, diretamente, pelos laços de sangue e de adoção, só restavam um punhado de mulatos, muitos, trinta ou mais, de várias condições, e eu era o que mais prometia e o que mais ambições tinha.
Ela fora mais caipora do que aquele muro sólido, porque extinguira-se, caíra de todo e não deixara de sua linha direta nenhum rastro.
Cheguei à casa do Uzeda.
Antes vi a vila. Há uma grande rua principal, com uma imensa matriz a cavaleiro dela, e toscas casas que a arruam. O trem passa embaixo e, junto ao paço municipal, é macadamizada. A câmara municipal é um caixão ignóbil. Não sei porque nós não sabemos fazer esses edifícios com o gosto que os arquitetos da Idade Média faziam os dos seus burgos. Que infâmia é a que vi! Entretanto, é moderna, tem menos de vinte anos. A capela tem o acabamento das torres em pirâmide; é sem gosto e soturna; não há uma casa com sentimento, e a gente tem o que ver, apenas nas das colunas, em que a escravidão pôs seus sofrimentos e as suas recordações.
A mulher do Uzeda é rapariga anêmica, dessas nossas [a] que a mocidade sabe dar um brilho singular com a sua fragilidade, mas que a maternidade e o tempo empanam e estiolam de modo lastimável. É morena, de curtos cabelos. Rosto em V, bom, para um rapaz inteligente e que nela, com seus hábitos de paciência que o professorado dá, empresta uma singular fisionomia de freira, que o olho direito mais estreito faz quebrar com certa canalhice.”
__________________________________________________________________
Fontes:
A vida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa, José Olympio Editora, 2002.
Diário Íntimo de Lima Barreto, Biblioteca Nacional.