Ser prefeito nem sempre é só cuidar da administração pública. No exercício do mandato ou fora dele, alguns de nossos chefes de Executivo dedicaram-se à literatura, ao teatro e à poesia, como Manuel Pacheco da Silva Júnior, Vicente Licínio Cardoso, Adolfo Afonso Saldanha, Mário Pinotti, Brígido Tinoco e José de Moraes e Silva. Entre eles, selecionei os dois últimos, poetas de nomeada, um do século XX e outro do século XIX.

Brígido (1910/1982) nasceu aqui pertinho de nós, no bairro do Barreto, no limite entre Niterói e São Gonçalo. Sua vida confundia-se entre as duas cidades, e ninguém melhor que ele para ser o Secretário da Prefeitura quando para cá foi nomeado o prefeito Eugênio Borges (1909/1977). Sucedeu-o, quando foi este último nomeado chefe da polícia estadual, e exerceu o cargo de prefeito por dois meses e meio. Havendo escrito dez livros, fixei-me no último deles – O Boi e o Padre – por ser de reminiscências que englobam sua passagem pelo executivo gonçalense. É nele que se encontra o trecho abaixo, a meu juízo de profundo sabor da alma humana:

“Noite alta, ao regressar da prefeitura, vejo o meu bairro [Barreto] quase inteiramente adormecido. A quietude é tamanha, que o mar distante me transmite a mensagem das ondas. Há tédio, dúvida e beleza na paisagem. Apesar de cansado, não me deito. E, na escrivaninha da farmácia [o pai dele era farmacêutico], rabisco estes versos:

 

MISTÉRIO DO EU

 

Aproxima-se a madrugada,
Imprecisa, silenciosa,
Pejada de mistério e telúrica quietude…
Sinto-me um sobrevivente do passado.

 

O meu bairro operário cabeceia, bêbedo de sono.
Calou o grito aflito das chaminés.
Mas os portões da fábrica lembram grades de prisões.
Bares e cafés, portas cerradas,
São marcas do pecado
Na noite de reduzida claridade.
Ao lado, jogado ao chão, o cartaz do cinema,
Disforme e triste,
Como a alma que eu tenho.

 

Distante, no cais deserto, uma lua enfermiça,
De olheiras e faces desbotadas,
Derrama luz de pergaminho amarelecido
Sobre os barcos que secam suas sombras.
— A luz do luar é irmã de minha angústia.

 

Estou intranquilo, hoje.
O peso do silêncio me sufoca.
Dói-me, na mente, o mistério de coisas profundas.
O jardim que encontrei, ontem, rebentando em flores,
Está exaurido, quase morto.
— Será a dúvida da ressurreição que me persegue?

 

Sinto-me estranho, hoje.
Tenho ânsias do absoluto, mas não ultrapasso o relativo.
Meus ouvidos estão cheios de minuetos
E de sonatas lânguidas…
Beethoven, Chopin, Haydn e Paderewski
Estão comigo.
E meus braços pedem mulheres
De mãos crispadas e cabelos desfalecidos,
De olhos azuis como os dos anjos de Botticelli,
E louras, e claras,
Como louras e claras são as manhãs do Brasil.

 

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Poder-se-á medir o céu
E fixar o número das estrelas?
Será possível calcular o volume das montanhas
E das águas dos mares?
Tudo lograremos, um dia …
Mas nunca se poderá sondar a órbita
Da alma humana,
Porque o mistério do Eu é impenetrável!

 

“A produção é, praticamente, o meu canto de cisne no mundo dos versos. Adeus, poesias! As raras que surgem, depois, não ganham publicidade. Umas são modernistas, outras guardam o velho estilo e têm caráter íntimo. Dedico-as, quase todas, à minha esposa.” – conclui Brígido Tinoco este trecho de seu livro.

 

Recuo no tempo e chego ao século XIX para falar de outro prefeito, José de Moraes e Silva (1832/1896), natural da cidade do Rio de Janeiro, mas que aqui fincou raízes tão fortes que, antes de falecer, na casa da filha, na então capital da República, pediu que seu corpo retornasse para cá e fosse sepultado no Maruí. Teatrólogo, cronista, contista, poeta, empresário, fazendeiro, major da Guarda Nacional, delegado de polícia, juiz de paz, vereador em Niterói (antes de nossa emancipação) e em São Gonçalo, José de Moraes e Silva promovia saraus em sua casa, em Neves, na hoje Rua Cônego Goulart (por ele aberta e denominada), nos quais reunia a fina flor da intelectualidade fluminense e carioca da época. Editou os livros de poesia Cintilas Poéticas, Lira do Órfão, Santuários (o primeiro do Brasil dedicado só às mulheres) e Mariposas, e é deste último que extraí o poema que vai abaixo, por sua singeleza e beleza sem par:

 

BORBOLETAS AZUIS

 

Querem saber por que os poetas,
Que gostam tanto da luz,
Dizem-nos que as borboletas
Mais bonitas são azuis?


Eu vou contar-lhes sem medo
De infringir a lei sagrada
Desde que a coisa é segredo
Só para gente inspirada.

 

Deus pretendendo de estrelas
Ornar o noturno véu
Pensou. E para fazê-las
Deu uns piques pelo céu.

 

E quando os furos se abriram
Por onde jorrou a luz
Desses recortes saíram
As borboletas azuis.

 

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Fontes:

A Pátria, 11-01-1856, p.3; 17-07-1858, p. 3; 07-04-1864, p. 2; 21-06-1866, p. 3 e 4; 09-06-1872, p. 2; e 01-06-1873, p. 2.

             Gazeta de Notícias, 31-08-1875, p. 2.

             Eco da Nação, 21-02, p. 4, e 12-03-1861, p. 3.

             O Fluminense, 16-07-1880, p. 1; 09-01, p. 2, 06-07, p. 2, e 25-12-1881, p. 1; 22-09-1882, p. 2; 10-01, p. 4, 16-02, p. 4, 10-06, p. 2, 22-07, p. 2, e 30-11-1883, p. 3; 16-04-1884, p. 4; 04-03, p. 2, 15-03, p. 2, 01-04, p. 3 e 4, e 06-11-1885, p. 2; 28-06, p. 2, 20-11, p. 2, e 24-11-1889, p. 1; 10-10-1890, p. 1; 15-04-1891, p. 1; 31-01, p. 1, e 16-07-1893, p. 1; 20-06-1894, p. 1; 01-10-1896, p. 1; e 08-05-1927, p. 17.

              A Província do Rio, 29-11-1883, p. 1.

              Gazeta de Petrópolis, 24-11-1894, p. 1.

              Emmanuel de Macedo Soares, Cronologia de Niterói, vol. 20, p. 131.

              Relatório do vice-presidente da província, José Ricardo de Sá Rego, à Assembléia Legislativa Provincial, de 08-09-1861, mapa n. 01.

              Relatório do Diretor da Instrução Pública da província. De 08-02-1862, p. 2, e de 15-06-1894, p. 16.

              Ata da Câmara Municipal de São Gonçalo, sessão de 31-12-1894.    

              Brígido Tinoco, O Boi e o Padre, Memórias, p. 108 e 109, Gráfica do Senado Federal, 1992.