Devido à colonização portuguesa marcadamente católica, a presença protestante em território brasileiro (e, por óbvio, no Rio de Janeiro e em São Gonçalo) é relativamente recente. Se aquela aqui fincou raízes duradouras já no século XVI, nem mesmo a tentativa de criação da França Antártica, na mesma centúria, sobretudo com huguenotes franceses, deixou marcas indeléveis na população.

Assim, só três séculos depois começou a se fazer presente o protestantismo, ou evangelismo (como queiram), e isto devemos em grande parte a um gonçalense, o pastor Francisco Fulgêncio Soren. Dele falarei um pouco adiante, após pequeno intróito sobre outros que aqui deixaram marcas tênues desse ramo do cristianismo.

Não existem, de fato, muitos registros, mas sabe-se que alguns pontos de pregação evangélica foram criados em residências no então distrito de Cordeiros, principalmente depois de ser publicada a lei geral (nacional) nº 3069, de 1863, de reconhecimento à celebração de casamento entre evangélicos. Porém, a defesa do protestantismo não era fácil, mesmo no princípio do século XX, como ocorreu em novembro de 1908, em Cordeiros, com o senhor Júlio (de sobrenome que desconheço) e um companheiro, os quais ali se aventuraram a pregar a Bíblia em praça pública e foram expulsos a pedradas. Quem tentou dar o primeiro grande impulso foi o missionário norte-americano Salomão Luiz Ginsburg (1867-1927), que quis se estabelecer em Neves, no final da década de 1880, não teve sucesso e foi para Niterói, passando a residir na Rua Andrade Neves, 61, centro. Quando estourou a Revolta da Armada (1893/1894), bombardeada a então capital fluminense, seus moradores fugiram para o interior e os ladrões saqueavam os imóveis abandonados. Nisso, entraram na casa do pastor Salomão e fizeram uma “limpeza” na noite de 28 de setembro de 1893, embora ele fosse um dos poucos que permaneceram na cidade, havendo produzido dois belos poemas – “Refúgio” e “Me esconde em Teus braços” – conclamando à permanência dos moradores. Nem ele suportou a violência e naquele mesmo ano foi para São Fidélis, RJ, onde foi preso por católicos radicais. Seis anos depois, em 1899, veio a ser espancado a pauladas em Macaé, RJ, causando acesos protestos do jornalista Manoel de Carvalho em defesa da liberdade religiosa. Ginsburg voltou a Niterói e se deslocou para o norte (a região Nordeste só viria a ser reconhecida em meados do século XX) do país, deixando plantadas na região as sementes de sua luta.

Voltemos, entretanto, àquele que considero figura principal do evangelismo no Brasil, em seus primórdios.

O ourives francês Pierre Soren chegou ao Brasil com o propósito de prestar seus serviços à corte aqui instalada pelo príncipe regente português, Dom João, e emancipada de Portugal por seu filho, o príncipe e depois imperador Pedro I. Soren fixou residência em São Gonçalo e encantou-se com a portuguesa da Ilha da Madeira, dona Cândida Pires [Soren, pelo casamento], com quem se casou na matriz de São Gonçalo. Do casal descenderam vários filhos, um dos quais, Francisco Fulgêncio, nasceu em primeiro de janeiro de 1869, na casa por eles habitada na Estrada da Conceição (hoje, Rua 18 do Forte).

Era católica a família Soren e Francisco tornou-se não apenas frequentador assíduo da Igreja Matriz, como adotou o cônego João Ferreira Goulart (1844/1903) para seu orientador. Chegado à juventude, decidiu seguir a carreira religiosa, mas antes foi aconselhar-se com o amigo cônego, que o desestimulou de fazê-lo (aqui, um esclarecimento necessário: há várias versões sobre o que Goulart lhe teria dito, mas o fato é que o próprio Soren, em suas memórias, não revela as razões que lhe foram apresentadas; ou seja, o que se diz por aí é tudo suposição). Francisco decidiu então estabelecer-se na corte como comerciário, em 1887, e alcançou sucesso financeiro, porém seu coração ainda desejava uma atividade religiosa. Certa noite, retornando de um baile para a residência, já então no Rio, ouviu uma música que ressoava de um ponto de pregação batista. Ouviu a preleção do pastor William Buck Bagby (1855/1939), ficou por ela cativado, mas foi ouvir o conselho do cônego Goulart, em São Gonçalo, que lhe deu uma bíblia de presente. Após lê-la, converteu-se ao protestantismo, abandonou o comércio em 1893 e seguiu para os Estados Unidos, a fim de ali formar-se no William Jewell College e no Seminário Batista de Louisville, ocasião em que conheceu a jovem Jane Filson (Soren), com quem viria a casar em 1905, deixando numerosa descendência. O pastor Francisco Fulgêncio Soren faleceu em primeiro de outubro de 1933 e foi sepultado no Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro, RJ. Conhecido como F. F. Soren, foi dele a construção do mais belo templo da Igreja Batista no Brasil, o do Rio de Janeiro, RJ, e também a instituição do seminário batista naquela cidade, importante para São Gonçalo.

   Essa importância está ligada à formação do pastor Manoel Avelino de Souza (1886/1962), designado para dirigir a Igreja Batista de Niterói, de onde ele projetou a instalação do tempo batista de São Gonçalo. Primeiro, instalou um ponto de pregação em Alcântara, em 1915, depois a transformou em congregação, em 1919, mesmo ano em que, por coincidência, adquiriu exatamente o imóvel que fora residência do cônego João Ferreira Goulart e ali fundou o templo em 29 de junho, o qual dirigiu até 1930, quando então o entregou à direção do pastor Waldemar Zarro. Também em 1919 surgia a Igreja Evangélica de Pachecos, que existe até hoje.

Antes de todos eles, era 1912 quando se instalou uma congregação batista na Rua da Lira (atual Rua Coronel Ernesto Ribeiro), nº 16, em Neves, que evoluiu para a Igreja Batista de Neves, fundada em 30 de março de 1930 e que teve em seu comando aquele que viera da PIB-SG, Manoel Avelino de Souza, até 1934, sendo sucedido pelos pastores Evódio Pinto de Queiroz (1934-1937), Waldemar Zarro (1937-1939), Alberto Araújo (1939-1996), Luís Roberto dos Santos (1996-2007) e Valtair Afonso Miranda (2008 aos dias atuais). Deles, o de maior projeção foi Alberto Araújo, professor de Português, Latim e Grego, que lecionou no Colégio Nilo Peçanha, em Niterói, foi diretor dos Colégios Cenecistas de Neves e Alberto Lessa (nos bons tempos em que eram gratuitos), fundou o Colégio Batista de Niterói e participou de todos os acontecimentos sociais de Neves. Nascido em 1910, faleceu em 1998 e teve moção de pesar aprovada pela Assembleia Legislativa, por iniciativa do então Deputado Hairson Monteiro. Na mesma década de 1910, reunia-se uma congregação evangélica na residência de Joaquim Goulart, em Cabuçu, que ali recebeu o ex-padre Hipólito de Campos para série de conferências, de 14 a 18 de março de 1917. Voltemos, entretanto, ao pastor Zarro, aquele que, a meu juízo, abriu as portas da cidade para o protestantismo.

Pastor Waldemar Zarro

Pastor Waldemar Zarro

Filho de Carlos Zarro e de dona Amélia Rodriguez Zarro, o menino Waldemar nasceu em Sapucaia, RJ, em 28 de janeiro de 1906, foi batizado na igreja católica local e consagrado a Nossa Senhora. Desistiu do catolicismo ao ouvir uma preleção do pastor Manoel Avelino de Souza, em visita à sua cidade, em 1921, e no ano seguinte matriculou-se no Colégio Batista de Campos dos Goytacazes, RJ, onde se formou no ginasial em 1925, transferindo-se para o hoje Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, obra do pastor Soren, e foi consagrado em 30 de setembro de 1930. Já então, seu amor colegial, Loide Reis [Zarro], era sua esposa, de quem teve os filhos Wilmar Reis Zarro e Loymar Zarro Pinheiro, e estabeleceu-se em São Gonçalo, onde recebeu a missão de suceder o pastor Manoel Avelino de Souza.

Antiga Primeira Igreja Batista em São Gonçalo.

Antiga Primeira Igreja Batista em São Gonçalo.

 

Seu trabalho inicial não foi fácil. O templo tinha apenas 70 membros (elevados para 1.300 até sua aposentadoria) e bem próxima estava a Igreja Matriz católica, dirigida pelo fundamentalista monsenhor José da Silveira Rocha, que proibira seus fiéis de passarem pela calçada em frente à Igreja Batista e referia-se a Zarro como “bode”, por ser ele maçom. A situação só mudou com a morte do monsenhor Rocha e a sua substituição pelo padre Godofredo Barenco Coelho (1905/1965), menos radical e que com Zarro fez amizade. Paralelamente, o novo pastor batista começava a abrir portas no fechado esquema político, religioso e social da cidade, para isso tendo a contribuição de um católico, o médico, vereador e deputado Luiz Palmier (1893-1955), também natural de Sapucaia, RJ, a quem o pastor muito ajudou na fase final da construção do Hospital de São Gonçalo e em sua posterior manutenção. No âmbito da própria igreja, que dirigiu até pouco antes de sua morte, Zarro não apenas construiu um novo templo, que inaugurou em 20 de abril de 1940 (e que era simples e acolhedor), como um segundo, inaugurado na década de 1950 e que, pela proporção, era cognominado “Maracanã das Igrejas Evangélicas” à época, respeitando o velho templo que ali existia e fora preservado até a década de 1990, quando foi posto abaixo para a construção do que chamo de “monstro de concreto”. O caminho aberto por Zarro foi trilhado pelo pastor Aníbal Nora, que viria a inaugurar em 10 de novembro de 1941 a Igreja Presbiteriana de São Gonçalo, e pelo pastor João Correia D’Ávila, aqui residente, ordenado em 30 de novembro de 1924, e que implantou a denominação Congregacional, além de tantos outros que, desde então, transformaram em parte a face religiosa do município.

Pastor Levi Melo - Foto do Facebook da PIBSG -

Pastor Levi Melo
– Foto do Facebook da PIBSG –

O pastor Zarro foi presidente cinco vezes da Convenção Batista Fluminense, membro das Convenções Batistas Fluminense e Brasileira, presidiu durante 21 anos a Junta Executiva da CBF, foi Juiz de Paz e membro, por vários anos, do Conselho de Jurados de São Gonçalo, duas vezes venerável da Loja Maçônica Perfeição Cruzeiro do Sul, foi incansável colaborador do Hospital de São Gonçalo, integrou o Rotary Clube de São Gonçalo e foi conselheiro do Conselho Estadual de Cultura do antigo RJ. Com isso, abriu as portas da cidade para o estabelecimento definitivo dos vários ramos do protestantismo na cidade. O pastor Zarro faleceu em dois de maio de 1974 e foi sepultado no cemitério de São Gonçalo, tendo sido seu nome dado ao Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) do bairro Brasilândia e a uma rua no bairro Nova Cidade, e por campanha popular (dirigida pelo professor Geraldo Pereira Lemos) seu busto em bronze (obra do escultor Honório Peçanha) foi colocado de frente para o templo batista, no centro da cidade. Com sua morte, foi sucedido pelo pastor Mauro Israel Moreira (hoje, nome de escola municipal), nascido no Rio Grande do Sul em 1950 e falecido em 2 de abril de 2002 no exercício daquela missão religiosa, momento em que a igreja ficou sob administração de um conselho pastoral, até 15 de fevereiro de 2004, quando a assumiu o pastor Levi Rodrigues de Melo, atualmente no comando daquele templo..

 

Fontes: Francisco Fulgêncio Soren, Intérprete de Cristo em muitas terras, de Lewis Malen Bratcher, tradução de Israel Belo de Azevedo, Junta de Educação Religiosa e Publicações da CBB, 1985.

            O Escudeiro Batista, edição de junho de 1974.

            Wikipédia, História da 1ª Igreja Batista de São Gonçalo, capturada em 27/05/2012.

            As Ruas Contam Seus Nomes, de Emmanuel de Macedo Soares, p. 144 e 145.

            João Marcos Soren, administrador da I PIBRJ e neto de Francisco Fulgêncio Soren.

            Wilmar Reis Zarro, filho de Waldemar Zarro.

            O Fluminense, 02-10-1881, p. 3; 24-09, p. 3, 30-09, p. 2, e 04-10-1893, p. 3; 12-08-1899, p. 1; 14-03-1917, p. 2; e 27-11-1924, p. 1.

  1. Gonçalo, semanário, 29-11-1908, p. 1.

            O Jornal,24-08 e 09-11-1919, ambos p. 8.

            A Gazeta, 28-06-1931, p. 1 e 4.

            O São Gonçalo, 14-04-1940, p. 1; e 09-11-1941, p. 2.